sábado, 1 de setembro de 2012

O PORCO PISCO OU PORCO BISPO

O PISCO, ERITHACUS RUBECULA, NUMA FESTA POPULAR DE EXUBERANTE SIMBOLISMO


(Uma contribuição para o volume de ARDEOLA de Homenagem ao Drº. J.A.VALVERDE)

ARDEOLA, Volumen 21(2), octubre 1975. Páginas 1163-1171



J. R. Dos SANTOS JUNIOR (Núcleo de Estudos Ornitológicos, Faculdade de Ciências, Universidade do Porto)



O pisco é uma avezita da ordem dos Passeriformes, família Turdidae e espécie Erithacus rubecula L.

É conhecido em Espanha pelo nome vulgar de Pelirrojo e em Portugal pelos nomes de Pisco, este o mais corrente, Pisco-de-peito-ruivo, Pisco de peito vermelho (Mindelo), Porco pisco e Porco bispo. Estas últimas designações correntes em Trás-os-Montes.

A última ouvi-a na freguesia de Meirinhos, do concelho de Mogadouro, quando me contaram a festa da matança do porco bispo, que a gente de Meirinhos costumava fazer todos os anos na quadra do Natal.

No Inverno ali se vêem porcos bispos à roda das casas, fraquitos esfomeados, e, no dizer do povo, “secos como as palhas”.

Conta-se na terra que, certo dia, um caçador foi à caça e comeu a merenda numa fraga, onde ficaram caídas umas migalhinhas de pão. Veio um porco bispo, pousou na fraga e pôs-se a comer as migalhas.

No fim, com o papo cheio, sentindo-se reconfortado e valente, deitou-se de costas na fraga com as pernitas esticadas para o ar, e começou a gritar:

- Meu Senhor Jesus Cristo

Deitai o céu abaixo.

Que eu pego nele com as minhas pernas.



A melra, quando tal ouviu, aflita, com medo que o céu desabasse, imediatamente rogou em contradita:

- Meu Deus não faças isso,

Que é porco bispo,

E não tem pernas para isso.



Ao que o porco bispo, arrenegado, ripostou:

- Melra cachelra,

Pica na merda,

Quem te mandou a ti responder?



Vejamos como era organizada a festa da matança do porco bispo, rodeada de exuberante e aparatoso simbolismo.

No dia de Natal, logo de manhã, fazia-se a montaria ao porco bispo.

Os caçadores da terra, de espingardas em bandoleira, reuniam-se na praça. Iam dali para as eiras seguidos por um carro de bois puxado pelos rapazes. À frente, presa à cavilha do cabeçalho, uma corda comprida, a lúria do carro, à qual puxavam 20 ou 30 homens em ringoleira (em fila indiana).

Os caçadores dispersavam-se pelos campos e lameiros à roda dos palheiros, à cata do passarinho.

O primeiro porco bispo visto a saltitar ou a esvoaçar de silvinha para silvinha era visado pelo caçador mais próximo e morto pela chumbada.

Todos os outros caçadores em grande gritaria, como se se tratasse de montaria ao porco bravo ou javali, desfechavam as suas armas em grande tiroteio.

Logo em toda a aldeia se comentava:

- Já mataram o porco bispo.

Morto o passarinho transportavam-no até às eiras com alarido como se carregassem um porco de muitas arrobas.

Colocavam-no em cima do carro no meio de duas grandes fachas de palhas, como que para amparar a minúscula ave, que mal se via no meio do sobrado do carro.

Homens e rapazes puxando e empurrando o carro, seguiam rua abaixo, chiando desabaladamente como faz o carro quando vai muito carregado.

Para que, por sua vez, este também chiasse um pouco, fizesse rugido (chiasse), apertavam-lhe as estreitoiras. E tudo aquilo se dirigia em grande animação para a Praça, frente à igreja no meio da aldeia.

Com as fachas de palha que tinham vindo no carro a calçar o passarinho, acendiam enorme fogueira para chamuscar o porco bispo.

Depois vinham homens com cântaros de água para a lavagem, que era simulada como se se tratasse de um anafado suíno de muitas arrobas.

Feito isto, o porco bispo estava pronto para ser esquartejado.

Cabia agora a vez a um dos circunstantes que, de avental branco, frente a um grande cepo, onde havia espetadas facas, grandes e pequenas, uma machada e um grande cutelo, iria partir a ave em pedacinhos minúsculos e fazer a distribuição pela gente grada da terra.

Tomando ares de magarefe entendido em seu ofício, empunhando ora a machada ora o cutelo, brandidos de alto, cravava-os no cepo, e, afadigado na repartição de tanta carne, gritava:

- Aí vão sete arrobas do bico,

Para o Senhor Padre Francisco.



Numa grande canastra com alva toalha de linho enfeitada de rendas, um homem, fingindo-se derreado, como se transportasse às costas muitas arrobas, levava um pedacinho do bico a casa do Pe. Francisco.

Dois rapazes, com capacetes de papel e armados de espingarda, acompanhavam a canastra como sentinelas vigilantes.

No regresso a canastra trazia fumeiro, pão trigo, vinho, nozes, amêndoas, figos secos, etc. Em regra todos primavam em bem sortir a canastra, mandando coisas que pudessem servir para a jantarada, em que, no fim da festa, toda a gente comia e bebia.



Nova cutilada, despedida com força e a mãos ambas, enterrava fundo o cutelo no cepo.

A algazarra suspendia-se por uns instantes e o magarefe gritava:

- Aí vão vinte arrobas da cachola (moela)

Para o Sr. José Maria Roca.



E outro homem de canastra às costas, levava o pequenino estômago do porco bispo embrulhado em alva toalha de linho, cujas franjas rendadas caíam por fora das abas do grande cesto.

E o Sr. Roca metia na canastra um pão (fogaça), uma ou duas alheiras, chouriças, uma cabaça de vinho, nozes, etc.

E a distribuição prosseguia:

- Ai vão quatro arrobas de costelas e o rabo

Para o Senhor Serafim Salgado.



- Aí vão sete arrobas de peitaça

Para a Senhora Maria José da Praça.



- Aí vão catorze arrobas da perna

Para a Senhora Maria José Governa.



- Aí vão dez arrobas da barriga

Para o Sr. José Joaquim Bernardes Macia.



- Aí vão seis arrobas da pá de dentro

Para o Sr. António Augusto Nascimento.



De cada vez um homem partia ajoujado por enorme canastra, que à ida transportava dois ou três gramas de carne do passarinho, mas no regresso trazia coisas várias para serem comidas na jantarada.

Era quase certo vir em cada canastra urna cabaça de vinho, e havia-as que levavam um cântaro.

Deste modo conseguiam boas alheiras, linguiças, salsichões, muito pão de trigo e de centeio, nozes, amêndoas, figos, maçãs e vinho em abundância.

Mas a festança ainda não estava acabada.



O que ficou descrito era da parte de manhã.

Da parte de tarde fazia-se o tribunal, no qual haviam de ser julgadas todas as pessoas de fora da terra que passavam em Meirinhos naquele dia.

Soldados, com capacetes de papel e correame também de papel, vigiavam atentamente os caminhos de entrada na povoação.

Abstenho-me de descrever as cenas mais ou menos movimentadas em que os de fora da terra eram presos e levados ao tribunal armado na Praça.

Em cima da mesa do juiz alguns livros, papel, um grande tinteiro feito da parte bojuda de uma cabaça cortada pelo colo.

As canetas para escrever eram prumas (ou seja, penas) da cauda de abertarda (grifo, bufo, abutre).

Ao lado da mesa um carro de bois com um grande cortiço das barrelas suspenso de uma corda amarrada às ingarelas ou engarelas (caniças).

Servia de badalo do cortiço uma maça das de maçar o linho.

Abria-se a audiência dando umas tantas badaladas de som cavo e soturno.

Encostada à roda do carro e presa à ingarela uma escada das mais altas que houvesse na aldeia. Pendente do último degrau um laço de corda. Era a forca, onde se simulava supliciar aqueles presos que se recusassem a cumprir a sentença ditada pelo tribunal.

Aberta a audiência e no meio do silêncio que todos guardavam para não perder pitada do discurso acusatório, o preso era identificado numa inquirição rápida e depois acusado.

A acusação incidia sempre por atribuir ao delinquente um crime estapafúrdio, o que provocava gargalhada geral na assistência.



Um exemplo só para não me alongar. Nesse dia os ricaços de Lagoaça costumavam passar para S. Pedro, e para além do rio, onde iam fazer a colheita da azeitona e a feitoria do azeite nos seus casais, quer da Quinta de S. Pedro, em termo de Meirinhos, quer do Cerejais, Sendim da Ribeira e Ferradosa, no vizinho concelho de Alfandega da Fé, além-Sabor.

À entrada do povo eram presos pelos soldados. O preso era levado à Praça onde estava amado o tribunal.

O juiz de cartola, vestido com uma saia preta a fingir de toga, estava sentado numa grande cadeira de assento de sola e costas altas.

O preso, homem rico e grande proprietário era acusado de ter roubado os sinos na catedral do Medal.

A condenação tem graça sabendo-se que no Medal, lugar do termo de Meirinhos, há urna pequenina capela que nem sequer tem sineta.

E assim aquele preso de categoria, proprietário rico, era condenado a pagar quinze tostões ou dois mil reis, quantia importante naquele tempo, quando urna libra valia quatro mil e quinhentos reis. Registe-se que a festa de matança do porco bispo há 60 para 70 anos deixou de se fazer em Meirinhos.

Mas não eram só os ricaços que eram presos.

Prendiam também um ou outro dos jornaleiros ou criados que os proprietários levavam consigo.

Quando um destes trabalhadores aparecia para ser julgado a audiência era agitada.

O desgraçado praguejava, levava-se dos diabos quando lhe diziam ter roubado uns pimentos ou um pepino em determinada horta do povo.

De pouco lhe valiam negativas e imprecações.

- Não quer pagar os dois tostões ou doze vinténs da multa? Pois então que vá à forca!

Arrastavam-no até à escada, dirigindo-lhe chufas de toda a ordem.

Quase sempre aquilo era remédio seguro.

O pobre do jornaleiro, espoliado do dinheirinho correspondente a um dia de trabalho, pagava à má cara, só para se ver livre daqueles diabos.

Alguns presos, mais tímidos, chegavam a assustar-se a valer, tremiam medrosos e pagavam logo. Porém no fim de contas, cada um pagava se queria.

O dinheiro das multas era para as despesas da festança com que nesse dia, em jantarada animada, toda a gente do povo comia e bebia a fartar.

A festa do porco bispo também se fazia em Valverde, freguesia confinante pelo norte com Meirinhos e, como esta também pertencente ao concelho de Mogadouro.

Realizava-se porém no dia 26 de Dezembro, dia de Santo Estevão.

Logo pela manhã cedo os caçadores reuniam-se em grande número para fazerem a montaria ao porco bispo.

Nas suas linhas gerais a festa tinha a mesma feição e as mesmas fases da de Meirinhos, à parte uma ou outra particularidade.

Assim, por exemplo, na festa de Valverde intervinha sempre o diabo, ou careto, mascarado que, com fardeta especial e a cara coberta com feia e cornuda máscara de pau costumava sair na quadra do Natal em peditório para o Menino Jesus.

Para fazer pela gente grada da terra a distribuição em arrobas (!) das escassas 20 gramas da carne do passarinho faziam uma enorme balança cujos pratos eram caniços dos carros de bois.

A carne era distribuída por homens vestidos de mulheres, com panais, ou seja, com aventais brancos.

Para receber o vinho iam mais dois homens com uma padiola que levava em cima um boto, feito de pele de cabra.

Do mesmo modo que sucedia em Meirinhos também em Valverde, no dia da festa do porco bispo, prendiam todas as pessoas de fora da terra que ali passassem.

O tribunal era armado no adro da igreja. Sobre uma grande mesa, tal como em Meirinhos, livros, papel, o grande tinteiro de cabaça e uma grande pruma de abetarda.

O juiz, delegado e escrivães constituíam o tribunal e julgavam os presos, condenando cada um deles na respectiva multa.

Há cerca de 130 anos que em Valverde também deixou de se fazer a festa do porco bispo.

Por tudo o que acabamos de ver é licito admitir que o passarinho, ali chamado porco bispo e noutras terras trasmontanas porco pisco, representaria simbolicamente um porco, devendo, na feição primitiva e remota deste curioso costume, ter sido o porco-bravo ou javali, outrora abundante em Trás-os-Montes, o animal caçado em montaria, e a sua carne comida em jantarada festiva e colectiva.

A matança do porco bispo era festa notável que se relacionava com a liturgia mítica do solstício de Inverno.

Problema que será interessante esclarecer, é o de apurar a razão pela qual o pisco foi a ave escolhida para representar simbolicamente o porco, e dai o nome vulgar de porco pisco.

Mas porquê o nome de porco bispo?

Outro problema que fica em suspenso.